Como disse o português Fernando Pessoa, “cumpriu-se o mar”, ou seja, chegou-se ao desejado destino. Para nós, desta costa do Índico, consumando-se a qualificação para o CAN, pela segunda vez consecutiva, cumpria-se o dever de repetir a proeza de 96 e 98. E tal como Fernando Pessoa, depois de “cumprir o mar” afirmou que faltava “cumprir Portugal”, ou que Portugal estava “condenado” à grandeza por esse feito, no caso de Moçambique deve-se cumprir em Marrocos, lá para os finais de Dezembro de 2025, a primeiríssima vitória de sempre no Campeonato das Nações de África e o apuramento à fase seguinte.
Por agora, resta-nos desfrutar do momento e preparar o também chamado CAN interno, que está bem à porta.
Assim, encontro neste espaço um momento para falar de Narciso, um moço que vi irromper a porta da redacção em finais da década de 90, em busca da realização do sonho de tornar-se (grande) jornalista.
Nessa altura, Narciso tinha a irreverência de muitos garotos do seu tempo, até nos trajes largos, querendo fazer-se parecer com os americanos rebeldes, desse período, mas curvando-se diante das exigências próprias de uma redacção, que era comandada por um homem rijo e quase sempre sem sorrisos: o finado Boavida Fundjua. Praticamente, Narciso substituiu o Didi, o Alfredo Jr., que partira para outras aventuras, “pegando” o basquetebol como seu “cavalo de batalha”. Todavia, pelas revoluções operadas na redacção, ele e o Atanásio foram chamados a evitar, com o director Almiro e o chefe Boavista, o naufrágio. E aí nasceu um novo Narciso, praticamente. Arrisco-me a afirmar que amadureceu.
Da mesma maneira que os árbitros, dirigentes de associações têm as suas paixões clubísticas, os jornalistas desportivos não fogem à regra. E, nesse capítulo, Narciso nunca escondeu a sua afeição, muitas vezes desmedidamente, pelo Desportivo, sendo a Selecção Nacional o seu outro “clube”, com mais clarividência quando os “alvi-negros” começaram a demonstrar incapacidade para estar em bom nível na “fina-flor” do futebol, em particular.
Sem beliscar o seu belíssimo trabalho, conseguiu ver detalhes positivos, mesmo em exibições menos conseguidas dos “Mambas”. As suas convicções fizeram-no travar “guerras”, discussões, inclusive comigo, sobretudo no aspecto técnico-táctico, campo que, fazendo uma auto-avaliação, o plano é razoável.
Quis o destino que na campanha de qualificação par o CAN-2019 Narciso acompanhasse os “Mambas” à Guiné-Bissau, a precisar de uma vitória, que até quase se confirmou (venciam por 1-2), mas uma desatenção da nossa defesa permitiu o golo de empate aos 90+4, por Frederic Mendy, num lance de bola parada.
Se Abel Xavier, seleccionador nacional, olhava para aquele cenário como um dos piores momentos da sua vida no futebol (um deles tinha sido no Euro-2000), quando esteve envolvido no lance controverso que resultou em golo para França, representando a selecção portuguesa, desviando a bola com a mão dentro da área, após remate de Sylvain Witord), Narciso sentiu-se traído pela Guiné-Bissau, que independentemente de sofrer uma derrota estava qualificada. Para ele, faltou solidariedade ao povo irmão de Moçambique, falante também de língua portuguesa e de história similar no período de jugo colonial, quebrado pela independência.
Narciso declarou em vários fóruns que “se a Guiné-Bissau um dia precisasse de um resultado para se qualificar, dependendo dos “Mambas”, enfrentaria o mesmo que Moçambique no Estádio 24 de Setembro, em Bissau, em 2019.
Na semana passada, a 19 de Novembro, Moçambique foi a Bissau à procura de um empate para qualificar-se ou que mesmo perdendo, que a margem fosse de um golo para terminar em segundo lugar no Grupo “I”, como aconteceu, e qualificar-se.
Para o gáudio de Narciso e de todos os moçambicanos, os “Mambas” venceram por 1-2 no mesmo recinto da “tragédia” de 2019, deixando os donos da casa em banho de lágrimas.
Ainda assim, Narciso não se sente completamente vingado. Quer, como disse em situação anterior, ver Moçambique qualificado e a Guiné-Bissau a precisar de um resultado que possibilite apurar-se e tramar-lhe e poder dizer: “cá se faz, cá se paga”. “Ensinaremos às próximas gerações de jogadores moçambicanos que é pecado de dimensão histórica esquecer a maldade de 23 de Março de 2019”, afirmou Narciso.