Lembrei-me dos tempos de infância naquele subúrbio assaz pacato onde só os fortes sobressaiam. Apesar de demasiadamente introvertido, acho que era um deles.
Havia uma coisa interessante. Os dias eram iguais para todos. Tínhamos falta de tudo, até de uma bola de verdade, mas éramos muitos felizes.
Aprendemos a fazer o “xingufo” (bola de trapos), alegrava as nossas tardes. A nossa inspiração eram os craques daquele tempo. Recordo-me que um rapaz vizinho de quintal jogava como Joaquim João. Imitava bem o “homem elástico” nos cortes acrobáticos e quando disputasse uma bola no ar. Um canhoto da rua de trás, era o Calado. Tinha uns dribles estonteantes. O Sitoi era o rapaz entroncado que se fazia valer da sua corpulência para importunar os defesas e fazer golos. Eu era o Mandito e por vezes vestia a capa do tio Naldo, por sinal, amigo do meu pai. Era duro na disputa. Não permitia veleidades de nenhum menino, até desse finório que vestia a pele do Calado.
Formaram-se equipas na zona com os nomes dos “clubes do topo” do país. Nessas equipas estavam lá os nomes sonantes desse período, que inspiravam os meninos. Zé Luís, Boror, Nené, Tereso, Sebastião, Mussa, Mussá, Miguel, Ângelo (Textáfrica), Nuro, Mandito, Naldo, João Ouana, Dover, Cremildo, Calado, Hermínio, Elias (Maxaquene), Messias, Salipe, Sergito, Ramos, Caldeira, Artur Semedo, Gil, Luís, Abdala (Costa do Sol), Miguel, Aurélio, Frederico, Calton, Urbano, Sitoi, Arnaldo, Cabral, Totó (Desportivo), Rafael, Joaquim João, Gafur, Zero Alfredo, Quarentinha, Ramos (Ferroviário), Sabia António, Artur Meque, Hassane, Orlando Conde (Palmeiras da Beira), Filipe, Fone Wa, Kwah, Rui Marcos (Ferroviário da Beira), Betinho, Lucas II, Lucas I, Jerónimo, Zé Manuel, Duarte, Nico (Têxtil) eram os nomes e equipas que predominavam na zona. Jogávamos de pé descalço e não havia equipamento, mas não passávamos a bola ao adversário, em hipótese alguma.
Os jogos, no sistema “bate e sai” prolongavam-se até ao escurecer. Alguns dos pais eram obrigados ao campo para obrigar os filhos a voltar a casa, e por conta disso fragilizavam algumas equipas.
Muitos furtavam-se aos trabalhos caseiros, esqueciam de fazer o “TPC”, até quando os nossos pais forçavam a fazê-lo, muitas vezes, à base de “chineladas” ou “reguadas”. Alguns amigos levavam tareia. Eu estava calejado, se calhar, porque um pouco antes da independência, na escola, as minhas mãos foram vítimas da palmatória (instrumento de madeira com alguns orifícios que causava dores horríveis na palma da mão por horas e horas).
Um dia, o Muzonde, que era dos meninos pouco escalado para os jogos da zona, por falta de atributos técnicos, sobretudo, ganhou uma bola como presente de aniversário. Era uma bola verdadeira, comprada na Somorel, uma antiga loja de equipamentos da capital.
No dia seguinte, num sábado, Muzonde espreitou à rua e vendo alguns meninos exibiu a sua bola. Saiu com ela, tentando dar uns toques, mas nada saía na perfeição. Os amigos, os tais craques da zona, aproximaram-se dele. Elogiaram e bajularam o rapaz, convencendo a trocar o “xingufo” pela bola verdadeira nas disputas do bairro. Aceitou na condição de pertencer a uma das equipas.
Não havia outra saída. Muzonde, o “perna de pau”, passou a ser sempre alinhado. Até fez alguns auto-golos, mas mantiveram-no em campo. Num desses dias, o Luís, na pele do Siquice, fez um fortíssimo remate e a bola embateu, com estrondo, no muro da casa das freiras. A situação fez Muzonde zangar-se e mandou expulsar o Luís.
A decisão não foi bem recebida, mas não havia outra saída. O Muzonde é que ditava as regras. O jogo começava e terminava quando ele quisesse. Num dia desses, decidiu punir a rapaziada, por mero capricho, não tirou a bola. Obrigou os amigos a resgatar o então esquecido “xingufo”.
Muitos anos depois, o filme repete-se num cenário não amador. Jogadores deixam de pertencer a um clube porque um empresário deixou de fazer parte, de forma directa, da gestão do clube. A “espinha dorsal” anterior quebrou-se. Os tais jogadores da carteira desse empresário estão agora associados a outras colectividades, porque o “dono da bola” se zangou.
Se a moda pega.