A cidade ainda dormia quando a missão começou. Eram 3.00 horas da madrugada em Maputo, e um a um, os atletas da selecção moçambicana de Atletismo iam sendo recolhidos nos pontos mais próximos das suas casas. Em mochilas leves e corações pesados de ambição, seguiam rumo a uma viagem que prometia mais do que competição: vivência, resistência e descoberta.

Pela estrada fora, os olhos lutavam contra o sono e a ansiedade. A carrinha avançava ao som de conversas tímidas e silêncios “sonolentos” que diziam muito. Às 9.30 horas, cruzámos a fronteira de Ressano Garcia. A África do Sul abria-se à nossa frente com paisagens que iam mudando de tom como se seguissem o ritmo dos batimentos cardíacos da “comitiva”.
Cinco horas depois, já em Mpumalanga, o céu pintava-se em tons de laranja sobre o espelho de água do Belfast Trout Dam 4. Um momento de pausa. Um pôr do sol que parecia dizer: “vocês chegaram até aqui, e isso já é uma vitória”.
Ainda não estávamos em Botswana, mas o espírito de equipa já tinha atravessado fronteiras invisíveis — entre o que se é e o que se quer ser.
Dali, seguir adiante já não era uma opção segura. O corpo pedia pausa. Encontrámos abrigo no Baobab Lane Lodge, um refúgio tranquilo em plena savana sul-africana, onde passámos a noite. Entre conversas suaves e o peso da estrada nos ombros, cada atleta reencontrou um pouco de si no descanso daquela noite.
Na manhã seguinte, com as energias renovadas e os olhos postos no destino, foi retomado o caminho até à fronteira com o Botswana — cuja travessia foi feita com entusiasmo contido, como quem sabe que a parte mais difícil ainda está por vir.
Francistown recebeu-nos com um calor seco e um ambiente que misturava nervosismo e adrenalina. O Obed Itani Chilume Stadium tornou-se, então, o palco onde Moçambique deixou a sua marca. Cecília Guambe encarou os 100 metros barreiras com a firmeza de quem carrega não só o nome do país no peito, mas a vontade de superação na alma. “A minha marca está dentro do padrão africano, mas esperava mais competitividade”, disse-nos após a prova, onde correu praticamente sozinha — contra uma adversária, mas também contra a ausência de pressão que só a concorrência real pode trazer.
Alcino Mulahe, estreante em provas internacionais de estafeta, falou com brilho nos olhos: “Foi a minha primeira vez numa estafeta internacional. Precisamos de mais provas como esta, para ter mais rodagem e experiência”.
Houve ainda uma desclassificação inesperada na estafeta masculina dos 4×400 metros — um golpe duro, mas que não apagou o esforço e a garra. Como sublinhou o treinador Salvador Chitsondzo: “Percorremos mil quilómetros de estrada, e o cansaço acusou, mas foi uma experiência e vamos lutar para melhorar”.
Quando os últimos “tiros” de partida já ecoavam apenas na memória, recebemos escolta da polícia local até ao Adansonia Hotel. No regresso ao alojamento, as selecções soltaram o cansaço em forma de alegria: dançavam, batiam palmas e entoavam cânticos típicos de cada país. Moçambique juntou-se ao coro multicultural, onde não havia competição, apenas comunhão. Foi o ponto alto humano da viagem: quando o desporto cedeu lugar à celebração da juventude africana.
Na manhã seguinte, depois de um pequeno-almoço partilhado com risos e despedidas iniciámos a longa viagem de regresso. Já em Limpopo, na África do Sul, um momento inesperado fez todos silenciar: no alto de uma montanha, em letras brancas e garafais, lia-se uma só palavra — JESUS. Foi impossível não parar. Registámos o instante com fotografias, mas também com o coração. Parecia uma benção, um lembrete, um sinal. Que, mesmo longe de casa, estávamos sempre guiados por algo maior.
De Maputo a Francistown, com paragens que se transformaram em memórias, esta missão foi mais do que uma participação: foi sobre resistência fora da pista, sobre companheirismo no silêncio da estrada, e sobre acreditar, mesmo quando o caminho é longo.
Porque há medalhas que não se penduram no peito. Penduram-se na alma e nem todas são medalhas de ouro. Algumas são feitas de poeira, cansaço e memórias que jamais se perdem.